23/02/2015

Quantos carnavais tens sobre a corcunda? Quanta meninice tens em tua velhice?

     


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       E não vemos, em Homero, o velho Nestor falar mais doce do que o mel, enquanto o feroz Aquiles prorrompe em excessos de furor? O mesmo poeta não nos pinta alguns velhos sentados nos muros e fazendo lépidos discursos? Afirmo, pois, de acordo com esse raciocínio, que a felicidade da velhice supera a da meninice.  Não se pode negar que a infância é muito feliz; mas, nessa idade, não se tem o prazer de tagarelar, de resmungar por trás de todos, como fazem os velhos, prazer que constitui o principal condimento da vida.
       Outra prova do meu confronto é a recíproca inclinação que se nota nos velhos e nos meninos, e o instinto que os leva a manterem entre si boas relações. Assim é que se verifica que todo semelhante ama o seu semelhante.
      De fato, essas duas idades têm uma grande relação entre si, e não vejo nelas outra diferença senão as rugas da velhice e a porção de carnavais que os primeiros têm sobre a corcunda. Quanto ao mais, a brancura dos cabelos, a falta dos dentes, o abandono do corpo, o balbucio, a garrulice, as asneiras, a falta de memória, a irreflexão, numa palavra, tudo coincide nas duas idades.
      Enfim, quanto mais entra na velhice, tanto mais se aproxima o homem da infância, a tal ponto que sai deste mundo como as crianças, sem desejar a vida e sem temer a morte.

(Elogio da loucura, Erasmo de Rotterdam)