25/08/2014

Anacronismo

     
      Ontem de manhãzinha, ao sair do plantão, me lembrei de uma cena que vivenciei há quinze anos, quando escrevi esta crônica. E percebi o quanto ela continua atemporal...
            Em uma tarde cinzenta, caminhava eu por uma movimentada avenida da minha cidade. Tudo estava de ressaca. Os carros pareciam bocejar o sono dos seus donos. Finalmente acabara a Micareta e o povo retornava ao seu quotidiano.
            Observo então um senhor que, de repente, aparecera à minha frente, sem que eu percebesse de onde viera. Parecia ter uns oitenta anos de idade. Aquele velhinho magro e trôpego, quase sem forças, empurrava um carrinho de picolés. Com dificuldade, tentava desviar as rodas dos buracos numa calçada desfigurada. No mesmo instante, passa um jovem apressado, completamente alheio àquele humilde senhor, até que nele esbarra e irrita-se por ele ali estar "atrapalhando o tráfego". Uma mulher que saía de uma loja, olha para aquele senhor obliquamente, com desprezo.
            Parou um pouco. Precisava tomar fôlego para continuar sua jornada. As mãos, calejadas e trêmulas, testemunhas de muito labor; as rugas e os ruços cabelos, cicatrizes do tempo. As lembranças de outrora poderiam fluir pelos lábios ressequidos e transmitir as lições que aprendera  pela experiëncia. E que levara a vida inteira para vivenciar.
            Como é triste ver uma relíquia de sabedoria, já exaurida pelo trabalho de toda uma vida, não poder desfrutar da velhice condignamente. E não ter o respeito e o carinho que merece. Aquela cena pôs-me a refletir sobre essa triste realidade.
            Eu segui o meu caminho com o coração apertado, e alguns metros depois, resolvi voltar e comprar um picolé, apesar do frio. Quem sabe eu não conseguiria  conhecer um pouco mais sobre aquele simpático senhor.
            Voltei. Os meus olhos ansiosos procuravam por ele. E não mais o encontraram. Desaparecera discreto como havia surgido.
            Fui embora levando o sabor amargo do egoísmo das sociedades "modernas", mas com o desejo de apreciar o que havia por trás daquele doce olhar...
      Não poderia cometer o mesmo erro novamente. Dessa vez, comprei o picolé e juntos sentamos num banquinho no Parque Municipal. Enquanto meu picolé derretia, eu sorvia cada palavra e o meu coração se enchia de alegria com as estórias que ele contava. E o meu domingo se tornou extremamente doce...

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